Uma entrevista com Andrew Solomon sobre discurso de ódio e depressão
Norte-americano é autor dos livros 'O demônio do meio-dia', 'Longe da árvore' e 'Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio'
Olá!
Nesta edição trago a entrevista que fiz ao saudoso portal HuffPost Brasil com o escritor Andrew Solomon, cujas reflexões literárias instigam as pessoas a ter conversas francas e aprofundadas sobre temas como depressão, solidão e suicídio. A publicação original é de 2018.
Desde que lançou um longo, visceral e acessível tratado sobre a depressão - o livro O demônio do meio-dia (Companhia das Letras) - em 2001, o norte-americano Andrew Solomon tem percorrido o mundo como uma voz e um texto capazes de reunir plateias numerosas diante de um assunto bastante evitado em nossa sociedade: o sofrimento.
A partir de um olhar sobre a própria depressão e de relatos de quem passou por jornadas excruciantes similares, o doutor em Psicologia pela Universidade de Cambridge trouxe o tema da saúde mental para as conversas rotineiras e despertou perguntas onde elas não eram bem-vindas.
Como a depressão se manifesta? Qual a relação com nosso modo de viver? Em que medida os tratamentos e medicamentos disponíveis trazem um enfrentamento efetivo ao problema? As respostas permanecem múltiplas, insuficientes em alguns casos, e pouco unânimes. Mas, pelo menos, a busca solitária de certas pessoas encontrou companhia.
Autor de um contundente prefácio na obra que Sue Klebold escreveu sobre o filho, Dylan, um dos garotos que fizeram o massacre de Columbine (em breve publicarei aqui um texto que escrevi sobre este livro), Solomon se interessa pelos humanos em seus matizes menos agradáveis ou compreendidos. O preconceito dentro do contexto familiar sofrido por pessoas com deficiências físicas, mentais e sociais ensejou o livro Longe da árvore (Companhia das Letras), publicado aqui em 2013.
Anônimos e famosos que se mataram são o tema de Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio (Companhia das Letras), uma coletânea de nove artigos publicados em veículos como a revista New Yorker e o jornal New York Times entre 2001 e 2018. Anthony Bourdain, Kate Spade, Robin Williams, Sylvia Plath e pessoas bastante íntimas do autor dão rosto e singularidade às suas palavras.
Na entrevista abaixo, que realizei em 2018 para o portal HuffPost Brasil, o consultor de saúde mental LGBTQIA+ em Yale e professor de psicologia clínica na Universidade de Columbia versa sobre a vulnerabilidade pouco admitida nas celebridades, a facilitação do suicídio trazida pelo acesso a armas de fogo, a relação entre as mortes e políticas de intolerância, e a urgência da prevenção do suicídio.
A entrevista na íntegra segue abaixo:
A tristeza e a depressão são temas bastante caros a você. O que aprendeu com seus momentos mais agonizantes? E, na sua opinião, qual o valor da tristeza para nossas vidas?
Andrew Solomon: O primeiro ponto a fazer é que tristeza e depressão não são a mesma coisa. A tristeza é uma parte importante do espectro de humor e seríamos desumanos sem ela. Se a morte daqueles que você ama não a deixasse triste, você não se envolveria no amor como a conhecemos. Há um enorme valor na tristeza; é o curso de todo o nosso envolvimento com o mundo. Já a depressão representa um distúrbio do espectro do humor e, embora possa conter tristeza, muitas vezes contém outros sintomas de forma mais proeminente. O oposto da depressão não é a felicidade, mas a vitalidade, e é ela que desaparece mais significativamente na depressão. Sentimentos de inutilidade, desespero, isolamento e medo são todos parte do que se passa com você na depressão, e todos e qualquer um destes sentimentos podem ser motores do suicídio. Você pode aprender muito com a depressão se ela não matar você, mas o que você aprende não é sobre tristeza; é sobre o instinto de sobrevivência, sobre como as pessoas continuam indo em frente diante do que parece ser um nível insondável de desespero.
De que maneira o ato de falar sobre suicídio pode ajudar a reduzir sua incidência? Há espaço para que o assunto seja falado?
Você pode levar as pessoas ao suicídio falando sobre isso; você pode levar as pessoas ao suicídio sem falar sobre isso. É um dilema muito inquietante. Falar sobre isso pode colocar a ideia na cabeça das pessoas. Sempre que há um suicídio público amplamente coberto, as taxas de suicídio aumentam; isso foi documentado pelo menos desde que Goethe publicou Os Sofrimentos do Jovem Werther dois séculos atrás, levando a uma onda de suicídios imitativos. Mas o silêncio sobre o suicídio é igualmente perigoso. O sentimento de solidão é um dos instigadores do suicídio, então é importante que as pessoas que estão pensando em se suicidar saibam qual é o impulso, quem compartilha desta situação e como a situação funciona a longo prazo. Aqueles que estão bem informados sobre o suicídio são mais capazes de evitá-lo; eles entendem que trata-se de um distúrbio psicológico que pode estar sujeito a melhorias e que o suicídio é uma solução permanente para um problema temporário. Eles aprendem como o suicídio é comum e quantas pessoas estão sob sua influência; a partir disso, entendem como outras pessoas conseguem combatê-lo.
No livro você afirma que o controle de armas de fogo seria a forma mais eficaz de reduzir suicídios nos Estados Unidos [ele traz o dado de que 50% dos suicídios americanos envolvem arma de fogo]. Poderia falar mais sobre esta questão?
Mais americanos morrem de suicídio por arma de fogo do que por homicídio por arma de fogo. Mais membros das forças armadas dos EUA cometem suicídio do que morrem em ação. O acesso a um meio de suicídio aumenta sua probabilidade. Alguns especialistas argumentaram que, se as pessoas não tivessem acesso a uma arma, encontrariam outra maneira, mas nossa descoberta atual é que, se você tirar um meio de suicídio, as pessoas têm tempo para pensar em seu impulso e agir para contê-lo. Quando altas barreiras foram erguidas ao longo da Ponte Golden Gate, em São Francisco, a taxa de suicídio na cidade diminuiu. As armas são os meios mais fáceis e eficazes de suicídio e estão entre os mais frequentes. Se as pessoas não pudessem colocar as mãos tão prontamente nessas armas, a taxa de suicídio diminuiria.
Por que o suicídio de uma celebridade choca tanto?
O culto da celebridade que vivemos hoje nos faz pensar que pessoas muito famosas têm tudo na vida, e oferece a falsa promessa de que se pudéssemos ter tudo isso sozinhos, estaríamos livres de sentimentos negativos e desfrutaríamos de nossas realizações. Claramente não é o caso: celebridades frequentemente cometem suicídio, mas mesmo aquelas que não lutam contra um vício, acabam passando por vários divórcios terríveis, ou têm filhos com algum diagnóstico e assim por diante. Nós sabemos disso, pois é o material das intermináveis revistas de fofocas. De alguma forma, sentimos como se essas pessoas fossem imunes à dor, mesmo quando passam por esses desafios. Dependemos de celebridades como nossos guias: é assim que você gostaria que fosse sua vida. Quando ocorre de eles terem níveis tão altos de desespero, ficamos chocados com isso e todo o nosso mundo desmorona um pouco. Temos que encarar a ideia de que, mesmo se nos casássemos com uma estrela, ganhássemos uma enorme quantidade de dinheiro e tivéssemos toda a bajulação do mundo, ainda poderíamos achar a vida intolerável.
As notícias do suicídio de um famoso costumam destacar os valores e qualidades daquela pessoa, além de suscitar comoção entre a sociedade. Este tipo de cobertura pode contribuir para que se construa uma certa idealização em torno de ser homenageado ou finalmente reconhecido após a própria morte?
O suicídio faz as pessoas famosas ficarem mais famosas, pelo menos temporariamente. Então isso é tentador. O suicídio deixa uma marca em muitas pessoas ao redor da pessoa que comete, seja ela famosa ou não. Afeta todos que a conhecem ou amam, todos que a admiram. A cobertura jornalística de um suicídio costuma ser elogiosa para a pessoa que morreu e, às vezes, isso pode acabar glamorizando o suicídio. Nós gostamos de tragédias; o fim trágico sintetiza a vida vivida antes.
O isolamento pode apontar para um maior risco de suicídio. Qual a importância de se compartilhar o sofrimento e construir redes de convívio e proteção?
O isolamento de fato impulsiona as pessoas ao suicídio. E uma das melhores coisas que podemos fazer para prevenir o suicídio é oferecer às pessoas uma rede melhor. Um terapeuta pode ajudar a atravessar algumas formas de isolamento, assim como vários suportes sociais. Recebo cartas com bastante frequência de pessoas que se levantam de manhã e comem alguma coisa, vão trabalhar na frente de uma máquina o dia todo (em uma fábrica ou em um computador), depois pegam alguma comida, voltam para casa e comem frente de um aparelho de televisão. Essas pessoas são, muitas vezes, suicidas; mas o discurso social é profundamente útil para gerar um senso de equilíbrio, um sentimento de que você tem um propósito no mundo. Compartilhar seu sofrimento geralmente alivia. Quando você fala sobre o que incomoda, o fardo se acalma, ainda que pouco e temporariamente. Falar sobre o que está machucando você com alguém que tem empatia pode ser a defesa mais importante contra a depressão profunda e o suicídio.
Outra questão trazida pelo livro são os efeitos da aceitação do preconceito e da intolerância pela sociedade. Você se refere à atual gestão de Donald Trump [a entrevista foi realizada em 2018]? De que maneira os discursos de ódio e de incitação à violência podem fomentar o desespero e a vulnerabilidade dos cidadãos?
Como o discurso de ódio e o incitamento à violência poderiam não fomentar o desespero? Quando você desumaniza outras pessoas, você se desumaniza. Quanto mais ódio existe no mundo, mais as pessoas são vítimas dele. Ser vítima do ódio predispõe você a se desvalorizar. E o suicídio é muito mais fácil de ocorrer depois de se desvalorizar. Eu não conheço as estatísticas sobre suicídio desde que Trump assumiu o cargo, então eu estaria extrapolando limites ao afirmar sobre isso. Mas acho que mais pessoas vivem com terror e ansiedade. Acho que mais pessoas têm medo de ser honestas com seus vizinhos. A violência gera violência e, às vezes, as pessoas direcionam essa violência contra si mesmas. Estamos vivendo em tempos desesperados e instáveis. Na semana após a eleição, meu terapeuta me contou, que, pela primeira vez em seus 40 anos de prática, todos os pacientes que foram vê-lo falaram sobre o impacto negativo que associaram ao que aconteceu. Todos eles estavam com medo.
A série 13 Reasons Why colocou o assunto suicídio em pauta não só entre os jovens, como também entre seus pais, cuidadores e professores. Ao mesmo tempo, foi criticada por sua abordagem explícita. Como você recomenda a discussão do suicídio na adolescência, considerando que esta é a terceira maior causa de mortes entre os jovens americanos?
A série foi julgada por glamorizar o suicídio para tornar o assunto mais acessível. Eu não assisti a tudo e não posso comentar especificamente. Mas, como disse antes, há um equilíbrio entre glamorizar o ato e ocultar suas ocorrências. Precisamos conversar com adolescentes sobre como o pensamento em suicídio é algo que pode ocorrer a eles, mas que jamais deve ser executado. Temos que mostrar a eles os efeitos devastadores de um suicídio em todos que o rodeiam. Precisamos falar sobre como as pessoas que se sentem suicidas geralmente estão se sentindo assim temporariamente, e como até mesmo o impulso de se matar parece um insight; é realmente um estado mental passageiro que dará lugar a outros, com melhores impulsos. Mas não devemos ser macabros nisso; não devemos nos deter em métodos de suicídio (o que pode fazer os adolescentes perceberem como podem fazê-lo sozinhos). Nós não devemos fazer um estardalhaço sobre os funerais ou outras formas de atenção póstuma que podem parecer tão atraentes. O suicídio é resultado de uma doença mental e essa doença mental é tratável. Ela pode ocorrer com qualquer um, e quase todo mundo pode melhorar. Esta é a mensagem simples que precisamos transmitir.
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Se você ou alguém que é importante para você estiver em sofrimento psíquico, busque ajuda, que pode ser conseguida de diferentes formas e para diferentes urgências. O Instituto Vita Alere fez um importante mapa com serviços de atendimento em saúde mental. O site Posvenção do Suicídio faz um trabalho muito sensível de atendimento a pessoas em luto por sucídio. Há também a sólida e responsável atuação do Centro de Valorização da Vida (CVV), que há décadas oferece atendimento gratuito a pessoas em sofrimento. Na Bahia há a importante iniciativa do NEPS (Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio). E para tratamento psicanalítico continuado, o Centro de Estudos Psicanalíticos possui uma rede de profissionais voltada para o atendimento à comunidade. Por conta da pandemia, muitos dos serviços indicados são realizados on-line.