E eu com isso?

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Por 12 meses amarelos

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Por 12 meses amarelos

No Brasil de hoje há dois discursos antagônicos. Um diz “fique vivo, aguente firme”, enquanto o outro, traduzido pela gestão da pandemia, quer nos convencer de que nossa vida não vale nada

Amanda Mont'Alvão Veloso
Sep 9, 2021
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De uns anos para cá, a proximidade do mês de setembro indica que algumas conversas finalmente serão encorajadas. O tabu vai ficar um pouco menos tabu - pelo menos, é essa a expectativa.  

Realizada no Brasil desde 2014, a campanha do Setembro Amarelo tem sistematicamente focado na prevenção do suicídio, ou seja, na expressão mais irreversível do sofrimento. É, portanto, uma iniciativa em tom emergencial, de alerta, com foco em situações de sofrimento agudo. Falamos muito sobre morte em setembro; mas, a prevenção do suicídio é, na prática, uma discussão sobre o insuportável do viver.

A campanha é inestimável: graças a ela, hoje o assunto suicídio – tão evitado e mitificado – frequenta um debate mais amplo, fora do campo da saúde mental, e é mais presente no dia a dia das pessoas. Ainda há muito o que aprimorar nas nossas discussões diárias, especialmente no que diz respeito à responsabilidade e sensibilidade que um tema complexo como este exige. É fundamental que abordagens levianas, comerciais e sensacionalistas sejam combatidas, pois estamos falando de um discurso endereçado a seres humanos em enorme vulnerabilidade.   

Demonstrada a pertinência indispensável do Setembro Amarelo, penso ser igualmente importante fazermos uma discussão adicional, com ênfase mais estruturante. Especialmente porque, tanto na clínica quanto no nosso dia a dia, as questões sobre sofrimento não chegam formuladas, prontas para serem divididas com outra pessoa.

É importante enfatizar que não é todo sofrimento psíquico que leva à ideação suicida e à tentativa de suicídio. No entanto, voltemos ao suicídio como paradigma: seu crescimento alarmante no Brasil exige atenção para uma questão bastante generalizada, que concerne a qualquer pessoa atravessada pela linguagem. Qual é o lugar da saúde mental em nossas vidas?

Proponho falar aqui de sofrimento psíquico, não necessariamente de suicídio. Do sofrimento mundano, banal, da estranheza do cotidiano. Porque saúde mental não pode ser assunto sazonal, lembrado apenas em situações de emergência ou desespero. É um tema que precisa ser instituído no dia a dia, e creio que este é um dos desafios mais urgentes da nossa sociedade.

A ideia aqui é falar de saúde mental não por sua ausência, que é como nos referimos diante do adoecimento; mas, sim, trazê-la para o campo das nossas relações mais cotidianas. É de saúde mental que estamos falando quando está difícil para dormir, comparecer ao trabalho, fazer um Zoom com os amigos, reconhecer sentimentos hostis, sentir-se com valor, relacionar-se com um outro. Ou quando falamos de conflitos, angústia, ansiedade, falta de sentido e inadequação.

Essas sensações desagradáveis colocam o sujeito em busca de respostas, saídas. E o melhor que podemos fazer com essa busca é formular perguntas sobre nós mesmos:

- O que me leva a escolher o que escolho? A seguir para determinada direção?
- Como me relaciono comigo mesmo e com os outros?

É querer saber sobre si, sobre a própria história, sobre as heranças transmitidas pela família e pela cultura... sobre onde o calo dói, sobre quais repetições a pessoa observa nela mesma e em suas relações, o que fazer com as próprias contradições. Trata-se de querer saber sobre o próprio desejo e sobre as questões mais íntimas.

Esses questionamentos são fundamentais para se lidar com aspectos muito presentes na vida e dos quais não temos como fugir: a perda, a decepção, o arrependimento, o desânimo, a revolta, a morte.  

Quando uma pessoa olha para si e para a própria vida, ela gera um relato. Esse relato sobre o que está difícil já é um diagnóstico legítimo para se reconhecer que algo não anda bem e que algum suporte é necessário. Foi o que vimos com a atitude da Simone Biles de não disputar algumas finais da ginástica nos Jogos Olímpicos. Não foi preciso existir um transtorno para dizer dos próprios limites e da sobrecarga com a qual ela lidava.

Dizer do sofrimento, ou do que está difícil, nem sempre implica um adoecimento ou uma produção de sintoma. Não à toa Freud, em 1930, afirmava que o sofrimento humano vinha de três fontes – todas inescapáveis:

- do corpo, que, com a decadência, um dia deixará de funcionar

- do mundo externo, que pode ser impiedoso

- de nossos relacionamentos com as pessoas

Lidar com a vida é uma tarefa desafiadora desde nossa origem. “A vida, tal como nos é imposta, é muito difícil para nós, traz-nos muitas dores, desilusões, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos prescindir de medidas paliativas”, escreveu o pai da Psicanálise no clássico texto O mal-estar na civilização (1930).

A partir deste ensaio, ele concluiu sobre o mal-estar inevitável que cada um de nós carrega, e sobre nossa familiaridade, enquanto humanos, com o infortúnio. Em outras palavras, Freud afirmava que constitutivamente temos uma intimidade com aquilo que não vai bem, ao contrário do que juram as promessas de felicidade que encontramos por aí.

Nem sempre o sofrimento vai ter nome; às vezes, estaremos diante de um mal-estar irrepresentável, que não pode ser colocado em palavras. Nomear o sofrimento é, por si só, um processo de elaboração que demanda construção, sem qualquer automatismo. São muitas as pessoas que chegam a um primeiro contato com um profissional psi e sentem que é difícil traduzir em palavras o que está acontecendo. Não é preciso estar pronto, ou ter uma noção esclarecida do que está acontecendo, para pedir ajuda.

Mas para que haja nomeação, é preciso haver escuta. De si e do outro. E essa fala que é tão íntima, tão delicada, precisa de uma escuta qualificada, capaz de suportar a dor do outro. É preciso que haja a legitimação daquele testemunho de “eu não aguento mais”. Quantas vezes testemunhamos uma situação de sofrimento psíquico sendo marginalizada, subestimada, tratada como “mimimi”, ponderada diante da “boa vida” que a pessoa aparenta ter?

Ou então o sofrimento aparece como um comprometedor da produtividade: ajusta isso logo pra voltar a render como era antes. Quantas vezes escutamos “isso é coisa da minha cabeça” e isso é desconsiderado como se não estivesse acontecendo, como se fosse uma invenção?

Não fazemos desaparecer um buraco colocando em cima uma placa que sinaliza que “não há nada aqui”. É preciso fazer aparecer esse buraco, dar um contorno para ele, permitir que algo seja criado ao seu redor. Não se trata de tapar o buraco; muito pelo contrário, é reconhecer sua existência.

Momentos de sofrimento psíquico costumam ser momentos de desamparo. E se tem algo que o desamparo convoca é a necessidade de um outro. Ele não nos deixa esquecer que a gente depende uns dos outros. E não há nada de errado com isso.

É nas nossas primeiras experiências de vida que aparece o desamparo. O bebê humano tem uma incompletude que faz com que ele precise do outro para ser alimentado, cuidado e protegido para sobreviver. A figura do adulto é fundamental para responder aos sinais de apelo que o bebê emite, como um intérprete de suas necessidades.

Esta noção de desamparo, que vemos que é estrutural, ou seja, marca a vida de todas as pessoas, é trazida por Freud em 1895, no texto “Projeto para uma psicologia científica”.

É este mesmo desamparo que movimenta o ser humano em direção ao relacionamento com outros seres humanos, como forma de superar, de forma coletiva, as fragilidades de cada um. É o que vemos na formação de famílias, comunidades e agrupamentos.

Estamos falando de laços, conexão, relação com um outro que é diferente de nós mesmos.  Fazer laço, portanto, é constitutivo, crucial. É o que torna possível a convivência.  

E como fica a questão do desamparo na pandemia que estamos atravessando desde 2020? Não há como ficar vivo sem que o outro ofereça consideração, importância, proteção... seja na máscara, no distanciamento, na vacina, na solidariedade, no reconhecimento das perdas, na política pública.

Logo, o desamparo de cada um concerne à comunidade. E Freud mostrou, em 1921, no texto “Psicologia das massas e análise do Eu”, que aquilo que é do individual é também do social, na medida em que o Eu não existe sem um outro que o constitua.

Se olharmos para o discurso de como lidar com o sofrimento – considerando que ele tenha sido reconhecido – vemos que é um discurso fortemente calcado na superação individual. Muitas vezes, ele deposita a noção de cuidado como uma tarefa exclusivamente individual: Você deve se tratar. Você deve superar. Você deve saber o que está acontecendo.

Claro que a implicação no próprio sofrimento é fundamental para que um tratamento seja viabilizado. Mas é preciso que o entorno também se posicione neste cuidado. Ele vai tornar esses cuidados possíveis ou impossíveis?

É preciso, então, oferecer amparo. Fazer convergir os discursos. Pois vejam a situação em que nos encontramos no Brasil de 2021: de um lado o discurso de “fique vivo, aguente firme, não esmoreça”. Ao mesmo tempo, um cenário em que a vida não vale nada, em que a morte e o descuido são banais.

Para onde vai a dimensão do luto quando se pensa na manutenção da produtividade em meio a tantas perdas? Quão violento pode ser um “vida que segue”?

Segue como, na marra?

Como sociedade, não estamos elaborando nossas perdas. Não estamos vivenciando o difícil processo de reconhecer que parte de nós vai embora junto com o outro. Não estamos fazendo o atravessamento necessário para que se possa fazer novos investimentos afetivos. Pra que se possa ver graça na vida de novo.

Percebam que nosso momento atual diz muito sobre como estamos tratando o ato de viver. E viver, por si só, nas melhores das condições, já é difícil.

O cuidado conosco e com o outro deve ser primordial. E alguns segmentos da sociedade vão precisar de atenção ainda mais intensiva. Porque o cuidado da saúde mental, que é complexo por si só, não pode prescindir das condições básicas de existência e de amparo: tem alimento? Tem teto? Tem água e saneamento? Tem proteção das chuvas, do frio, do calor? Tem possibilidade de transitar por um mundo em que as trocas dependem de dinheiro? Há respeito à diferença ou ela se tornou um risco de morte?

Viver precisa ir além de sobreviver.

Assim como a gente precisa aprender a conviver para estar em sociedade, a gente também precisa aprender a sofrer. Trata-se de elaborar o que acontece e extrair os significados da experiência, por mais dolorosa que tenha sido.

É preciso também denunciar as produções de sofrimento, seja por um outro ou por nós mesmos.
Combater a negligência.
Identificar sobrecargas, especialmente as que não são humanas.
Fazer algum tipo de freio à desumanização.
Se é humano, tem limite, dias ruins, perdas.

E onde podemos encontrar a escuta que é tão fundamental para o viver? Nos consultórios, nos dispositivos da saúde pública, nos agentes públicos, nas formulações de política pública, nas escolas, no tipo de acolhimento que uma sociedade pode oferecer. É necessário continuar criando espaços de escuta.

O que a gente vai construindo com essas escutas transversais é a possibilidade de cada um de nós ir aprendendo a identificar quando é “tudo bem não estar bem” e quando é um alerta para algo mais insuportável, que requer uma assistência especializada e criteriosa.

Mas, para isso, a gente precisa parar um pouco este nosso modo desenfreado de tocar a vida e olhar pra nós mesmos e para o outro. Se não, fica muito difícil enxergar algo além do presente, que pode ser desolador. Que haja, em nós, o compromisso com a ideia de futuro.

O texto acima é uma adaptação de uma fala que fiz sobre sofrimento psíquico a convite do Ministério Público de Santa Catarina, durante evento realizado este ano sobre o Setembro Amarelo. O primeiro dia foi dedicado às reflexões sobre sofrimento psíquico e prevenção do suicídio - a gravação pode ser assistida aqui - e teve também as falas da psicanalista e psicóloga Soraya Carneiro Carvalho-Rigo e do psiquiatra Rodrigo Rosa Silveira.

Se você ou alguém que é importante para você estiver em sofrimento psíquico, busque ajuda, que pode ser conseguida de diferentes formas e para diferentes urgências. O Instituto Vita Alere fez um importante mapa com serviços de atendimento em saúde mental. O site Posvenção do Suicídio faz um trabalho muito sensível de atendimento a pessoas em luto por sucídio. Há também a sólida e responsável atuação do Centro de Valorização da Vida (CVV), que há décadas oferece atendimento gratuito a pessoas em sofrimento. Na Bahia há a importante iniciativa do NEPS (Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio). E para tratamento psicanalítico continuado, o Centro de Estudos Psicanalíticos possui uma rede de profissionais voltada para o atendimento à comunidade. Por conta da pandemia, muitos dos serviços indicados são realizados on-line.

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