"Simone Biles desiste." A manchete noticiada é a da desistência, que precisa ser justificada. Lesões corporais, que geralmente afastam atletas de seus sonhos olímpicos, não costumam levantar muitos porquês. O corpo ilustra as marcas da dor, do cansaço e dos limites. Mas, se a exaustão chega pela invisível saúde mental, como foi o caso da favoritíssima ginasta Simone, as perguntas não cessam.
"Você tem certeza?"
"Trabalhou tanto pra chegar até aqui, não dá pra aguentar mais um pouco?"
"O que faria com que alguém já tão acostumada às provações decidisse dar um basta no momento mais decisivo?"
É como se o "não aguento mais" de Simone precisasse de corpo, de carne e de fratura para ser escutado. Como se, para ser escutado, seja preciso antes ser visível. O fato é que a psicanálise e a psicossomática há tempos vêm escutando o corpo que é porta-voz da dor, que produz adoecimentos. E mesmo que o corpo não grite, a fala pode ser termômetro, apelo, pedido de socorro.
Simone falou. E, com sua fala, milhões de pessoas se sentiram escutadas.
Curiosamente, ouvimos, com frequência, que assim que ela superar sua questão de saúde mental, ela vai "voltar ao normal" e reconquistar aquilo que ficou pendente.
Mas saúde mental não é algo a ser superado, como uma fase a ser deixada para trás ou uma hesitação inconveniente. O movimento é oposto, é progressivo: a saúde mental é algo a ser cultivado, amparado, investido. Trata-se de permanência, estruturação, construção de alicerce, tijolo por tijolo. É a partir da saúde mental que a gente tem condições de se relacionar com o outro e com nossas próprias dificuldades. É só com saúde mental que atletas podem suportar o valor das derrotas e também das conquistas, que podem deixar os ombros pesados de responsabilidade.
Fiquei pensando no quanto Simone deve ter pensado na sua decisão. Nas crises de ansiedade que podem ter antecedido a escuta desse desejo. No quanto suas marcas — ser mulher, ser mulher negra, que conseguiu resistir ao racismo secular que define quais subjetividades devem ser vitoriosas — se tornam não apenas a vitória de uma sonhadora, mas um triunfo coletivo. E isso não é pouco.
Quantas Simones neste momento se encontram espremidas entre o direito de pedir uma pausa e o suposto dever de sempre continuar e persistir, muitas vezes em nome de tantas outras pessoas… Pois o sistema social que vivemos é tão perverso que faz questão de desconsiderar as subtrações violentamente impostas pelo racismo e joga, sobre ombros individuais, a tarefa de serem vitoriosos como uma exceção.
Sim, poderíamos falar aqui da saúde mental que se fragiliza universalmente, independentemente da cor da pele. Todo apelo de saúde mental deve ser escutado, na medida em que as subjetividades tocam pontos tão singulares que só a própria pessoa pode nos dizer o quanto dói o calo.
Mas não posso deixar de escutar que o grito de Simone traz apelos entrelaçados, dolorosos porque também costurados em torno da exigência de pódios em uma vida constantemente ameaçada pelo racismo. Se aos corpos negros já é custoso sobreviver, na medida em que diariamente precisam de uma luta para existir, imaginem o custo do compromisso de saírem vitoriosos.
Pode uma jovem negra e bem-sucedida, coroada pelo país que mata George Floyd e Breonna Taylor apenas por serem negros, abdicar da própria visibilidade gloriosa?
Que o sofrimento de Simone Biles, que provavelmente envolve uma série complexa de motivações, não seja romantizado; ela pediu para parar porque doía demais. Que ela receba todo o amparo necessário para se reerguer e seguir da maneira que sua subjetividade desejar. Parar é também um jeito de ficar vivo.
Que a psicanálise, clínica que revolucionou o tratamento do humano ao privilegiar a escuta, possa sempre escutar a subjetividade de sua época, como recomendou Lacan. E nossa época continua terrivelmente racista e vergonhosamente insensível aos pesares alheios. É uma época que idolatra os vitoriosos, tirando deles seus traços de falência, e apaga os longos percursos do sonho, da tentativa e da participação. Que possamos, como a pioneiríssima psicanalista brasileira Virgínia Bicudo, escutar não somente as dores internas, mas também as externas, perpetradas por outros humanos.
Assistindo à entrevista de outra gigante, a brasileira Rebeca Andrade, que traz em sua medalha de prata uma trajetória que inclui ajuda e carinho, não pude deixar de me emocionar. Rebeca enaltece a voz de Simone: ela foi sábia ao se permitir se escutar.
Atletas de elite de fato traçam uma vida baseada na superação dos limites — seus e dos adversários. Mas são humanos. Há sempre um limite intransponível, a borda difícil de nomear. Simone soube acolher a borda dela, o que não deve ter sido uma decisão fácil.
Simone Biles, quando desiste, insiste. Rebeca Andrade, quando se solidariza e se atenta aos próprios limites, insiste.
Insistem em suas humanidades possíveis.
Que recebam todo nosso amparo, como sociedade, sempre que precisarem de um pouco mais de calma, um pouco mais de alma.
Lindo texto. Quanta luta interna, quanta garra e coragem, até para desistir.
Que saibamos escutar e respeitar nossos limites para não cairmos na armadilha do “vencer à todo custo” -referindo a outra boa música - pode ser a gota d’água! ;^)
Excelente reflexão!