Nazismo e fascismo entre nós: falta de memória? De elaboração psíquica?
Conversei com Marcia Tiburi, Christian Dunker e Mary Del Priore para entender o que Filosofia, Psicanálise e História podem dizer sobre esses horrores
Olá, como estão?
Em julho de 2017, publiquei no HuffPost Brasil uma reportagem que buscava entender sobre os retornos do nazismo e do fascismo a céu aberto - sim, a céu aberto e com reverberação pública, especialmente no Brasil, já que a adesão a esses regimes mortíferos da (des)humanidade nunca parou nos porões e fóruns clandestinos. À época, eu buscava entender se o que estava em questão para essas emergências era a ausência de informação, de produção de memória ou de elaboração. Fui ouvir então o psicanalista Christian Dunker, a professora de filosofia Marcia Tiburi e a historiadora Mary Del Priore, pertencentes a diferentes campos do saber. À época, Bolsonaro ainda não tinha sido eleito e sua existência era mais pesadelo ameaçador e menos revoltantemente cotidiana. As reflexões propostas por Dunker, Tiburi e Del Priore me marcaram muito - e continuam ressoando, já que o desprezo a determinadas vidas só escalou desde então. Como o site saiu do ar, resolvi trazer a reportagem pra cá.
Publicada originalmente em 19 de julho de 2017:
“Ainda me choco (ou sou levado às lágrimas) quando sou confrontado com as atrocidades dos meus antepassados”, afirma o editor alemão Timon Muerer, de 37 anos, ao ser perguntado sobre sua relação com o passado de seu país.
O passado a que ele se refere é o Holocausto, cuja perseguição étnica, religiosa e sexual em nome da ideologia nazista de Adolf Hitler provocou o extermínio de aproximadamente seis milhões de judeus na Alemanha, entre 1933 e 1945. Outros grupos foram perseguidos pelas autoridades alemãs, como ciganos, pessoas com deficiência física ou mental, poloneses e russos, sob o pretexto de serem de uma “raça inferior”. A caçada intolerante se estendia ainda a comunistas, socialistas, Testemunhas de Jeová e homossexuais.
Em 2005, um memorial dedicado às vítimas foi inaugurado em Berlim. A construção havia começado em 1999. “Mesmo que a história alemã seja mais do que os 12 anos da ditadura nazista, ‘nunca se esqueça’ é um dos fundamentos do estado alemão atual”, ressalta Muerer.
Mal cicatrizou e a ferida que marca um sofrimento mundial é aberta diariamente. Nem se passaram 100 anos desde o Holocausto e a intolerância reaparece em diversos países, inclusive no Brasil, por meio do neonazismo. Negros, refugiados e árabes são tratados como alvos. O mundo que se diz globalizado dá amostras sistemáticas de que não sabe lidar com a coexistência das diferenças.
“De fato, o nazismo, mas também o stalinismo, o Cambodja e tantos outros exemplos de violência absoluta sublinham a intolerância em relação ao Outro”, sentencia a historiadora Mary Del Priore, autora da trilogia Histórias da Gente Brasileira (Leya).
“O fato de conhecermos tais momentos de barbárie não nos corrigiu. Seguimos racistas, antissemitas, anti-islâmicos, xenófobos e homofóbicos. A banalização do racismo e a falta de limites no discurso político que não suporta o politicamente correto – veja Trump ou Jean-Marie e Marine Le Pen - aumentam o sentimento de que podemos dizer o que quiser. E, por que não, fazer o que quiser.”
Por meio de relatos orais, museus, correspondências, notícias e cadáveres, temos uma extensa e dolorosa documentação do que a segregação e a intolerância fizeram ao longo da História: Apartheid, Holocausto, guerras civis, dizimação de comunidades, ditaduras sangrentas, genocídios de índios e de “loucos” (vide o Holocausto Brasileiro). Ao mesmo tempo em que nunca tivemos tanto acesso a informações e tantas possibilidades de denunciar opressões, aumenta o número de pessoas simpáticas ou adeptas ao extermínio das diferenças. Se os erros do passado retornam à nossa rotina presente e ameaçam o futuro com novos massacres, o que estamos fazendo com nossa memória?
Contato doloroso com a memória
Hoje, sabemos que o “presente” diz respeito à nossa compreensão do mundo, contextualiza Del Priore. Como seres humanos, queremos nos compreender e compreender por que agimos ou pensamos de uma certa maneira.
“Para nos ‘compreendermos’, recorremos à memória para modelar nossa identidade, a de nosso grupo ou sociedade, e para revitalizar nossa própria história. Conhecer a memória e a história dos outros colabora para construirmos a nossa, nos aceitando e corrigindo injustiças, compartilhando valores e organizando um ‘viver junto’.”
Recorrer à memória, porém, não garante um contato amistoso com ela, pondera a professora de Filosofia Marcia Tiburi, autora de Como conversar com um fascista (Record).
“A sociedade, de um modo geral, tem uma relação problemática com a memória porque a gente a vive como elogio do passado ou como ressentimento. Tem sempre essa relação de amor e ódio em relação ao passado, ao que se foi. A memória que a gente guarda é aquela que ‘compensa’. O sofrimento é o efeito de um tipo de memória que seria melhor não ter.”
Tiburi enfatiza que a memória é inventada pelas pessoas e atravessada por interpretações produzidas dentro de contextos, o que demanda cuidado ao olhar para o passado. “Por isso os historiadores responsáveis vão aos documentos”, destaca. Este cuidado, porém, não é incentivado nos dias atuais.
“Muitas vezes a relação com a História não passa de uma curiosidade, e levar o passado a sério não é algo que faça parte da cultura da nossa época. Hoje, no clima fascista do nosso tempo, tem gente que diz com tranquilidade que Hitler não foi tão mau. Tem gente que está voltando a achar que o fascismo é até ‘viável’ como ideologia política.”
Segundo Tiburi, vivemos uma época de vazio do pensamento, em referência à pensadora alemã Hannah Arendt:
“A reflexão, que é um esforço, é um processo que deriva de um relacionamento e surge justamente do diálogo. Em outras palavras, a gente pensa junto com os outros. Em uma época de vazio de pensamento, a reflexão está em baixa.”
Autoritarismo em nome de quem?
Para o psicanalista Christian Dunker, autor do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo), os processos traumáticos de extermínio e segregação do século 20 envolvem a transmissão de uma experiência inominável por ao menos três gerações. O avô dele desapareceu em uma batalha na Rússia; o pai passou a Segunda Guerra Mundial fugindo de bombardeios na Alemanha, e ele, que vive no Brasil, conhece essas histórias por narrativas familiares, filmes e livros. “Aprender não é tão simples quando se trata do inconsciente”, ele diz na entrevista.
“Não é que a experiência histórica tenha sido ignorada, mas agora é que ela retorna. Agora que é o ajuste de contas real com a sua verdade. Conversando com muitos parentes meus na Alemanha, encontrava sempre uma mesma atitude sobre o nazismo: ‘Foi um erro, construímos novas leis para evitar isso, por isso não acontecerá de novo.’ Infelizmente não acredito que esta atitude intelectualista seja suficiente.”
Para pensar a experiência humana, a tragédia, como Freud e Lacan frisaram, continua sendo um bom modelo por ser um gênero que absorve a ideia de que a humanidade vem com algumas gramas de horror e de loucura, afirma Dunker. Não se trata de justificar ou legitimar a maldade humana, mas sim, de pensar como os excessos cometidos em nome dos autoritarismos foram sempre criados em nome de ideais de super humanos:
“O homem feliz, o novo homem, o super homem... tais figuras são muito perigosas e elas são produzidas pela negação de que não somos tão elevados como gostaríamos, e uma das tarefas mais difíceis de uma existência é olhar para isso. É melhor reconhecermos estes fragmentos do incurável humano se queremos lidar de outra maneira com nossas leis e com nossos outros.”
O retorno à barbárie, antítese da civilização, frequentemente é descrito como um temor. Dunker lembra que a barbárie é uma produção da nossa insuficiência em interpretar o outro pelo que ele é, um outro. A julgar pelo que está ocorrendo nos dias atuais, os tempos já são sombrios:
“Você cria uma forma de vida que, no trabalho, dissemina o horror da segregação dos mais fracos com demissões anuais, associado com uma cultura de guerra e competição entre departamentos, áreas ou filiais de uma mesma empresa. Você cria um tipo de competição educacional que autoriza o doping massivo em nome de melhores resultados. Você se diverte vendo pessoas sendo excluídas em reality shows. Você suspende ou controla a circulação livre da palavra, seja na política seja no espaço público. Você torna invisíveis efeitos massivos de segregação de gênero, de raça, de imigrantes, de pobres, de refugiados. Depois disso tudo você perguntará: ‘mas como fomos chegar neste nível de ódio e intolerância?’”
Enquanto cada um diz o que quer e faz o quer, a individualidade se sobrepõe ao coletivo, a ponto de haver uma negligência em relação ao futuro. “Estamos vivendo uma espécie de exagero ou de hipérbole dos nossos próprios princípios”, critica Dunker.
“Se o que vale é cada um e sua própria bolha de sobrevivência, por que eu, que sou um idoso no interior da Inglaterra, deveria pensar no futuro de meus netos? É melhor Brexit. Eu, um consumidor voraz de lixo e poluição, por que deveria pensar na catástrofe ambiental que se produzirá daqui a 50 anos? Eu, um gerente desta empresa neste verão, por que teria de pensar nos colapso que se produzirá daqui a cinco ou seis semestres, quando já peguei meu bônus e estou em outra? Eu, que vivo no Brasil hoje, com uma crise hoje, por que pensar na educação ou na saúde nos próximos 20 anos? O problema é que nós efetivamente não pensamos assim. Nós pensamos que o ‘outro’ pensa assim.”
A resistência como saída
De acordo com Del Priore, a gestão da diversidade devia ser prioridade no Brasil, mas não é.
“Faltam formadores de opinião interessados em pensar questões como a ética, o humanismo e a liberdade, temas que nos ajudariam a entender que a exigência de autonomia e do respeito ao Outro não significa renunciar ao coletivo. Podemos, sim, e devemos aceitar a diferença, sem abandonar nossa própria identidade.”
As defesas do fascismo e do nazismo que testemunhamos nos dias atuais não são uma surpresa para Tiburi. Estavam previstas:
“O sujeito repete os processos institucionais porque nós introjetamos as instituições. Se um juiz rasga a Constituição, o ‘zé ninguém’ do dia a dia faz o mesmo. Em um contexto autoritário, em que as instituições, o governo, a família e os meios de comunicação são autoritários, o indivíduo tende a agir conforme o procedimento estabelecido na cena. Mas é importante frisar que o autoritarismo não nasce na pessoa; ela o aprende como um método, um caminho de sobrevivência, um modo de ser.”
A tendência, se a gente não resiste, é o autoritarismo absoluto, diz a professora de Filosofia. Um dos caminhos apontados é a aliança entre intelectuais, professores, ativistas e mídias alternativas contra o que ela chama de “avanço do neofundamentalismo” no mundo das respostas prontas.
“A saída é a resistência. Ela é o que sustenta uma janela aberta para que o momento autoritário passe.”
Del Priore destaca que só a educação dará conta de grande parte dos problemas da sociedade brasileira, inclusive da violência. Para ela, criar espaços seguros e respeitos na sociedade também é uma forma de fomentar a tolerância.
“A história não é cíclica, nem se repete. Ela tem estruturas de longa duração que reemergem ao longo do tempo. Daí a importância da memória. Para fazer o luto dos fatos trágicos que marcaram o séculos 20 e 21 é preciso lembrar, sim, mas esquecer também. E, graças ao distanciamento no tempo, a história tem o papel de libertar-se do passado e focar nas modificações das sociedades e dos indivíduos, apontando mudanças.”