Um garoto de oito anos vê uma foto de pessoas presas em uma cela. “Papai, o que é isso?” O pai responde que era um lugar para loucos.
“Mas não entendi, por que prendiam os loucos?”. O pai também não entende.
Dentre todas as violências possíveis, a omissão talvez seja a forma mais perturbadora, porque é silenciosa e permite que os estragos perdurem por anos. Só a omissão foi capaz de permitir que 60 mil brasileiros morressem dentro do Hospital Colônia, em Barbacena (MG). Um genocídio no maior hospício do Brasil.
A história transformada em memória mostra os horrores de experiências de segregação, como o Apartheid e o Holocausto. Um ser humano definindo o direito de vida de outro ser humano. Milhões de vítimas e um legado de perplexidade permanente: do que somos capazes de fazer quando temos poder?
Na tragédia brasileira de Barbacena, os pacientes internados à força foram submetidos ao frio, à fome e a doenças. Foram torturados, violentados e mortos. Seus cadáveres foram vendidos para faculdades de medicina, e as ossadas, comercializadas.
Amontoados em um trem, chegavam Marias, Josés, Silvios, Antônios, Elzas. Eram pessoas tristes, pessoas tímidas, epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas engravidadas pelos patrões, mulheres trancadas pelos maridos, moças que perderam a virgindade antes do casamento, crianças rejeitadas pelos pais por não serem perfeitas, pessoas fora do registro da "sanidade”.
Estavam ali porque alguém os tinha declarado “loucos”.
“Você pode ser meu pai?”, pergunta um garotinho, chorando, para o fotógrafo Napoleão Xavier, que visitava o Colônia. Uma criança louca ou uma criança abandonada?
A comovente lembrança, assim como o diálogo no começo deste texto, é trazida no documentário Holocausto Brasileiro, produzido pela HBO e lançado em 2017.
O roteiro e a direção são da jornalista Daniela Arbex, autora do premiado livro homônimo que inspira o filme e que ganhou uma nova edição, bem caprichada, pela editora Intrínseca, em 2019. Armando Mendz também assina a direção do documentário.
Esta história brasileira tão trágica também chega à TV por meio da série Colônia, que estreia na Globoplay e no Canal Brasil no dia 25 de junho, segundo informações de Arbex.
Holocausto Brasileiro é um livro de grande, porém, necessário desassossego. A pesquisa criteriosa e sensível da jornalista, explicitadas pelo rigor com datas, informações e o alcance daqueles acontecimentos, encontra a dolorosa documentação fotográfica de Luiz Alfredo.
A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar. Em 1930, com a superlotação da unidade, uma história de extermínio começou a ser desenhada.
Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro
Arbex reúne mortes registradas como “casuais” entre as décadas de 1930 e 1980 e lhes devolve o real sentido: no Colônia, as pessoas internadas eram condenadas à morte. O documentário segue o mesmo caminho, de nomear o inconcebível.
Enquanto vivas, aquelas pessoas eram expostas às mais variadas indignidades, como comer ratos, beber água de esgoto ou tomar eletrochoques constantes. Um holocausto praticado pelo Estado, com a conivência de médicos, funcionários e da população. “Todos falharam com as 60 mil vítimas do Colônia”, lamenta a autora.
Mas em vez de procurar culpados e pretender julgá-los, Arbex traz à tona o que estava à margem da imagem e dá voz a quem precisou se calar por ser inconveniente para a sociedade que define quem pode ser ouvido ou não.
Ao falarem, os sobreviventes sentem saudades, tristezas e revoltas, e têm a possibilidade de se reconhecer na própria história. Há uma conquista ali, de lugar no mundo, de se tornar alguém com passado e futuro. Parece algo simples e imediato, mas estas eram pessoas impedidas de viver e de fazer escolhas.
Fruto da premissa jornalística de apurar e relatar os fatos, o documentário também traz os depoimentos de quem esteve do outro lado da história, em uma posição ativa. Gente que aplicou eletrochoques, distribuiu injeções, vendeu corpos.
Em momento algum estes testemunhos são “demonizados” ou recebidos com agressividade. São apresentados com objetividade e contextualizados com documentos. Como Arbex disse após a exibição do filme para a imprensa, “o processo de reconhecimento da participação nesta tragédia é doloroso”.
Neste sentido, o filme transmite uma poderosa – e necessária - mensagem por meio da linguagem: ao ouvir vítimas e algozes, não perpetua a segregação que define quem merece ser ouvido e quem merece ser calado.
O silêncio de décadas, interrompido pelo lançamento do livro, vai dando espaço à difícil tarefa de se lidar com os gritos da realidade. Uma realidade que torna normal o tratamento indigno dos “anormais”. Segrega aquilo que não reconhece em si, e transfere para o outro uma suposta monstruosidade.
Uma realidade que chama de louco aquele que se arrasta pelo hospício, com olhar vago e sons irreconhecíveis. Declara, como sãos, aqueles que impõem sofrimento.
Ainda que institucionalmente ostentem a premissa ser um local de “tratamento", lugares como o Colônia não se propõem a integrar uma pessoa à sociedade. Os horrores do hospício já tinham sido denunciados em 1961 pelos impactantes registros do fotógrafo Luiz Afredo na revista O Cruzeiro. São dele as imagens desta edição.
Em 1979, o jornal Estado de Minas publicou a reportagem “Nos porões da loucura”, assinada por Hiram Firmino e com fotografias de Jane Faria. No mesmo ano foi filmado o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton. Ao visitar o hospício de Barbacena, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, referência na luta pelo fim dos manicômios, declarou em uma coletiva de imprensa que havia estado em um “campo de concentração nazista”.
Mas foi só na década de 1980 que a história de terror do Colônia teve um ponto final. Mais tarde veio a reforma psiquiátrica, em 2001, e foi estabelecido um novo modelo de assistência na saúde mental, baseado em uma rede de serviços e com os pacientes sendo tratados em residências terapêuticas. A luta antimanicomial teve muitas conquistas no Brasil, mas ainda falta municípios, estados e governo federal darem vida à legislação e desenvolverem estruturas de atendimento para as pessoas que não mais podem ficar internados em instituições.
O Colônia foi fundado em 1903, e por oito décadas levou adiante um tratamento desumanizador. É tentador pensar que o Mal tinha um rosto naquele lugar, ou que seria fácil reconhecer os vilões.
Mas o trabalho de Daniela Arbex, de trazer à história do Brasil uma revelação tão dolorosa quanto importante, mostrou que o horror é tão humano quanto a iluminação. E essa história recente instala uma advertência pra vida toda: é no silêncio que a intolerância se transforma em ordem. E normalidade.
O texto acima é uma adaptação de reportagem originalmente publicada por mim no saudoso portal HuffPost Brasil, em 2017, e faz parte de uma série de edições da newsletter voltada para discutir o tratamento de saúde mental no Brasil. O primeiro texto pode ser lido aqui.
A recomendação do livro de Daniela Arbex só não é mais redundante porque se faz mais urgente do que nunca: nele, a autora indiretamente deixa lições sobre a importância da memória histórica, do papel social do jornalismo, do livre acesso à informação, da fiscalização dos poderes públicos e privados e do respeito à dignidade humana. É com estas mesmas premissas que recomendo as demais obras de Daniela, também lançadas pela Intrínseca.
Mais uma vez, obrigada por sua leitura. Você pode me seguir no Instagram também.
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Texto excelente!
Lembrei-me do conto de Guimarães Rosa “Sorôco, sua mãe, sua filha”