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Loucura e retrocesso no Brasil

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Loucura e retrocesso no Brasil

Manicômios e as formas contemporâneas de segregar pessoas indesejadas

Amanda Mont'Alvão Veloso
May 25, 2021
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Loucura e retrocesso no Brasil

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Obra de Carlos Pertuis, óleo sobre papel de 2/8/1950. Reprodução: Coleção Museu de Imagens do Inconsciente

Olá!

Nas próximas edições desta newsletter, quero trazer para discussão alguns caminhos percorridos pelo tratamento da loucura no Brasil, considerando realidades dolorosas que poderíamos chamar de “passado”, mas que infelizmente mantêm sua atualidade a cada vez que a sociedade se dispõe a segregar aqueles que ela considera indesejados, desajustados e não merecedores de convívio.

O mês de maio marca um momento histórico para o tratamento do sofrimento mental no Brasil: o dia 18 tornou-se o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, instituído como reconhecimento pela luta dos profissionais por um tratamento mais humanizado das pessoas que precisam utilizar o sistema de saúde mental.

O movimento pelo fim de práticas institucionalizadas como o eletrochoque e a privação do convívio social nasceu na década de 70 e obteve conquistas históricas como o início da reforma psiquiátrica, em 2001, com a aprovação da Lei 10.216. A partir dela, a assistência em saúde mental passou a ser baseada em serviços de base comunitária e com o dever de proteger os direitos das pessoas no processo de cuidado. Porém, o texto original da lei foi modificado durante sua aprovação, de forma que não instituía formas claras para a extinção dos manicômios (para saber mais, leia o relatório Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil).

Os médicos dão muito remédio
e as enfermeiras para não terem trabalho
só ficam gritando
vou dar choque
vou dar amarra
Ser louco é uma barra.

Beta (Miséria do Hospital Psiquiátrico - Os inumeráveis estados do ser)

A discussão em torno do encarceramento daqueles que são sentenciados como loucos é atualíssima, especialmente porque há tentativas recentes de desmonte do modelo baseado na sociabilização dos tratamentos dentro e fora de instituições para dar lugar a políticas de exclusão e de apagamento da subjetividade.

“Após duas décadas em que presenciamos um avanço para a consolidação da reforma psiquiátrica, observamos um retrocesso inquietante nas políticas de saúde mental no Brasil. O fato, por exemplo, de que o conselho que define a Política Nacional sobre Drogas ter sido completamente esvaziado dos representantes da sociedade civil, incluindo médicos e psicólogos, me parece gravíssimo. Vemos o ressurgimento de práticas focadas em hospitais onde o peso maior é na medicalização e internação”, afirma o psicanalista e psiquiatra Marcelo Veras à BBC Brasil em entrevista que fiz em 2019 - leia a íntegra da conversa aqui.

Veras é autor do livro A loucura entre nós: uma experiência lacaniana no país da Saúde Mental (Contra Capa), em que relata sua experiência como diretor do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador (BA).

A loucura sempre foi segregada. A loucura nas ruas perturba, e novas práticas insistem em manter a velha estrutura clínica que visa calar o delírio, sem entender que o delírio em si já é uma tentativa de cura; é preciso escutá-lo, e não simplesmente silenciá-lo.

Outra grande questão é achar que a loucura é uma questão do corpo, e que o cortejo de profissionais que lidam com a saúde mental no cotidiano (psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros) é coadjuvante do ato médico, esse sim o ato definitivo na abordagem da loucura. Acontece que nossa mente não se encontra no corpo.

Marcelo Veras, psicanalista e psiquiatra, em entrevista à BBC Brasil

Adelina Gomes, óleo sobre tela de 11/4/1962. Reprodução: Coleção Museu de Imagens do Inconsciente

Discutir a política pública de tratamento do sofrimento mental é reconhecer a complexidade inerente a cada pessoa e encontrar meios de viabilizar seu contínuo enlaçamento social, em vez de excluí-la como se ela não pertencesse à sociedade e como se seus sintomas não se relacionassem com o mundo em que vive.

Para o psicanalista Mauro Mendes Dias, que há quase duas décadas avalia as práticas terapêuticas de pacientes nos Hospitais São João de Deus e Nossa Senhora de Fátima, em São Paulo, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica agora sucumbem para privilegiar pequenos negócios relativos a internação psiquiátrica, por meio de clínicas utilizadas com essa finalidade. Nesta entrevista à BBC Brasil, ele comenta sobre a volta da lógica de encarceramento da loucura como tratamento:

Trata-se do retorno de uma mentalidade redutora e punitiva, no sentido de visar a uma adaptação forçada às expectativas do meio social. Basta um pouco de experiência nesse campo para constatar a lucratividade de tais iniciativas, que contam com hiperinvestimentos nas medicações.

Sabe-se, também, que o tempo de internação é cada vez mais reduzido, tendo em vista a falta de vagas na rede pública, aliada ao baixo valor das diárias pagas pelo SUS para manter o paciente internado. Tudo se passa como se o binômio internação/medicação fosse suficiente para abordar a complexidade das patologias mentais.

Mauro Mendes Dias, psicanalista e supervisor de hospitais psiquiátricos, Caps (Centros de Atenção Psicossocial) e outros dispositivos, em entrevista à BBC Brasil

A humanização do tratamento de saúde mental é uma discussão ampla e composta de muitos profissionais e membros da sociedade civil dispostos a resistir às práticas excludentes que frequentemente retornam às políticas públicas como “única solução”. Nas próximas edições, trarei aqui uma resenha do documentário “Holocausto Brasileiro”, baseado no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, em que ela denuncia décadas de desumanização no Brasil, e também um texto que fiz em homenagem à grande psiquiatra Nise da Silveira.

Para mais documentações, aqui tem o link da mostra Memória da Loucura.

A relação entre maio e a luta antimanicomial guarda muitos simbolismos: foi neste mês, em 1998, que o paranaense Austregésilo Carrano Bueno moveu uma ação judicial por erros de diagnóstico que o colocaram em instituições psiquiátricas cujos tratamentos basearam o excruciante relato compartilhado no livro Canto dos malditos. A obra foi adaptada para o cinema com o filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky. Bueno morreu em 27 de maio de 2008, deixando um histórico de luta e resistência no movimento antimanicomial.

Cena do filme Bicho de Sete Cabeças

E dando sequência às dicas de leitura, a editora Aller, que tem títulos excelentes em seu catálogo, acaba de lançar uma coleção online e gratuita de textos inéditos. Quem assina a estreia dos volumes Letras Psicanalíticas é o psicanalista argentino Pablo Peusner, com “Do ideal de família à criação desproporcional”. O texto estará disponível para download no site da editora.

Aguardo você no próximo post. Os anteriores podem ser lidos aqui.

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