Sonhar como ato político
Em tempos de pandemia, o que temos feito com nosso desejo e com os sonhos em nossos laços?
Em tempos de realidade esmagadora e inescapável, quem ousaria sonhar com dias melhores?
E em tempos de necropolítica, qual seria o lugar ocupado pelo sonho em nosso viver?
Como seres de linguagem, sonhamos. Desejos inconscientes e restos do dia a dia se entrelaçam e produzem uma outra cena, uma que nos coloca em contato com desenhos improváveis e surpreendentes da própria vida.
Quando a política presente comprime a existência entre sobreviver e morrer, parece restar pouco espaço para a criação subjetiva que compõe a afirmação sobre como estamos vivendo.
A partir do livro Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia (Autêntica, 2021), conversei com a pesquisadora da UFRGS Rose Gurski, uma das organizadoras da publicação junto aos psicanalistas Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini e Miriam Debieux Rosa. Rose falou sobre as revelações trazidas por nossos sonhos quando interpretados – leia mais aqui – e trouxe a construção de um conceito que vem sendo trabalhado em parceria entre UFRGS e USP.
Trata-se do conceito de oniropolítica, desenvolvido junto aos também pesquisadores Miriam Debieux Rosa e Christian Dunker, e que ganha ainda mais relevância frente às incertezas angustiantes geradas pela gestão brasileira da Covid-19.
Deixo então a palavra com Rose Gurski:
“Os sonhos desde Freud são uma espécie de via-régia para o inconsciente. O acesso às imagens produzidas pelo sonhador propicia a aproximação com aquilo que é o mais difícil para o sujeito, o que está recalcado, apartado da consciência, ao mesmo tempo em que o sonho permite, pelas diferentes articulações e edições que o sujeito faz, que este encontre com aquilo que ainda não existe em termos subjetivos e culturais. Quando sonhamos temos a chance de despertar para a dimensão do desejo e de alguma espécie de novo.
Nesse sentido, o sonho importa para que o sujeito fique menos cindido entre a consciência e o inconsciente. Quando digo menos cindido quero me referir aos efeitos na forma de sintomas, mal-estar e angustia que se produzem a partir do recalque.
De todo modo, importa contar que antes da pesquisa sobre sonhos em tempos de pandemia, tínhamos iniciado - eu e a colega também da UFRGS, professora Claudia Perrone –, a construção de outra pesquisa anterior junto com os professores da USP Miriam Debieux Rosa e Christian Dunker, na qual estávamos desenvolvendo o conceito de oniropolítica (Dunker, 2019; Gurski e Perrone, 2019).
A oniropolítica surgiu como uma política que se coloca, desde a psicanálise. A ideia inicial era pensar que, caso a psicanálise pudesse contribuir com uma política, seria a política dos sonhos, ou seja, uma política do sujeito e do desejo. Pensamos essa como uma terceira via alternativa, uma política de vida que não seria nem a biopolítica e tampouco a necropolítica. Tínhamos a vontade de contribuir com uma via alternativa que, a partir da psicanálise e de sua ética, pudesse nos ajudar a pensar na construção de uma estratégia passível de esburacar o cenário social de 2019 que já se apresentava constituído por pensamentos polarizados e binários.
A proposta da oniropolítica não é relativa à dimensão terapêutica do sonho, nem tampouco à ideia de construir noções específicas de uma biografia ou mesmo da psicopatologia do sujeito. Com a oniropolítica queremos tensionar as atuais políticas de morte através da retomada da função coletiva do sonho e do sonhar. Nesse sentido, precisamos ampliar os estudos a fim de melhor interrogar se o sonho, como um elemento da história singular, poderia funcionar enquanto um dispositivo de rearticulação da história social, colocando-se também a serviço da crítica da cultura. É deste modo que nossa interrogação inicial com as pesquisas acerca da oniropolítica – ‘Como despertar de um tempo de adormecimento sem ficarmos na espera passiva pelo fim da história?’ – toma, na atualidade do Covid-19, outras direções: ‘De que forma a escuta dos medos que emergem nas narrativas oníricas, em tempos de pandemia, pode nos ajudar na compreensão das estratégias psíquicas dos sujeitos frente ao excesso de angústia atual?'
As narrativas oníricas carregam essencialmente a dimensão polissêmica da linguagem, a possibilidade de que os sentidos não se esgotem, nem sejam arbitrariamente estabelecidos. A saúde mental de um sujeito e de uma sociedade está muito ancorada na riqueza de sentidos que o espaço relacional e social suporta. A própria noção de efeitos éticos e políticos do trabalho com os sonhos se ancora na abertura ao material onírico como possibilidade de se forjar algum tipo de novo a partir das reedições singulares que o sonhador produz desde a realidade da qual participa. O ponto principal é que as imagens oníricas apontam para uma leitura crítica, problematizando uma lógica meramente instrumental. O crucial é aprendermos a pensar com novas imagens, que articule o núcleo traumático da pandemia a formas de elaboração e criação.
A enunciação da oniropolítica em tempos de ódios e de pandemia vem justamente para interrogar o que temos feito com o sujeito, com o desejo e com o sonho na vida psíquica, nos laços e na cena política. Nesse sentido, problematizar o que move um sujeito singular em direção à ação política através de seus sonhos pode ser um gesto fundamental de politização tanto dos sujeitos como do laço social. Temos apostado que a dimensão do sonho pode bem ser uma forma de nos levar a forjar modos mais criativos e interessantes de lidar com o atual mal-estar na cultura e o consequente desejo de fascismo que não deixa nos espreitar.”
Leia mais sobre sonhos aqui:
Sonhos na pandemia documentam a estranheza de nossa época (revista Elle)
No enigma dos sonhos, uma ajuda para a realidade (portal Time de Saúde)