Os efeitos do autoritarismo nos laços sociais
Entrevistei o psicanalista Marcelo Checchia sobre os mecanismos psíquicos envolvidos na tirania e na servidão voluntária
Olá! Esta é uma entrevista com a qual aprendi muito e que infelizmente também saiu do ar com o fechamento do portal HuffPost Brasil. Ela foi concedida e publicada em 2020. Nada mais justo do que recapitular essas importantes reflexões do psicanalista Marcelo Checchia, dado o momento brasileiro de escolha (ou recusa) do autoritarismo.
Boa leitura!
Diz o ditado que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Podemos assumir que há aqueles que ordenam e, na outra ponta, aqueles que se sujeitam às tais ordens. Um ingrediente significativo desta máxima é que o bom senso – o tal do juízo – é atribuído exclusivamente àqueles que se dispõem a obedecer.
A sabedoria popular reverbera, via linguagem, os arranjos sociais vivenciados no dia a dia. Não à toa as relações costumam ser pensadas dentro das duas possibilidades citadas acima: ou se comanda o outro, ou se submete a ele. O autoritarismo e a submissão, portanto, seriam as duas opções disponíveis no “menu” de modos de existir no mundo. O que explicaria, então, os mecanismos psíquicos que permitiriam a servidão voluntária e a vontade de dominação?
Esse questionamento levou o psicanalista Marcelo Checchia a pesquisar o tema em seu pós-doutoramento no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Deste trabalho nasceu o livro Origens psíquicas da autoridade e do autoritarismo (Editora Dialética, 2020), que articula psicanálise, filosofia, antropologia, linguística e literatura para elaborar uma teoria psíquica sobre as relações de poder e de dominação.
No livro, Checchia enfoca as condições psíquicas – algo como uma disposição inconsciente – para essas relações tão assimétricas, mas sempre considerando os impactos que os fatores sociais exercem sobre as pessoas. Segundo o autor, os modos pelos quais o Eu de cada um é formado resultam na base psíquica para o estabelecimento de relações de domínio e servidão. É neste contexto que a publicação auxilia a compreender fenômenos como a obediência de milhares a um tirano ou a eleição de líderes flagrantemente autoritários.
Ainda que o ditado popular reflita um imaginário em que só se pode mandar ou obedecer, Checchia argumenta que estas relações não são inescapáveis, sendo possível e necessário pensar possibilidades de uma vida social e subjetiva “não condicionada à dominação ou à submissão”.
Nesta entrevista, o autor analisa a relação entre a política e as engrenagens subjetivas, as táticas do autoritarismo, a emergência de discursos de ódio e a crescente supressão de direitos no cenário brasileiro.
Leia a seguir:
O que separa a autoridade do autoritarismo?
Marcelo Checchia: Essa é uma questão complexa e que perpassa quase todo o livro. De modo geral, autoridade e autoritarismo se confundem. Uma autoridade frequentemente usa de sua posição para exercer um autoritarismo, um domínio sobre o outro para fazer prevalecer suas vontades e seus valores próprios. Um juiz, por exemplo, enquanto autoridade que representa a boa execução das leis de um governo, que não só favorece a promotoria na investigação do acusado, mas culpa-o mesmo sem ter provas consistentes com a finalidade de favorecer seus ideais políticos, é autoritário.
Para diferenciar autoridade e autoritarismo, proponho então distinguir autoridade simbólica de autoridade despótica. Em suma, a autoridade simbólica é aquela que dá ao sujeito o acesso a um novo campo de significações, ampliando assim suas as possibilidades de subjetivação e de expressão. A autoridade simbólica ajuda o sujeito a se emancipar psiquicamente. Um professor de filosofia, por exemplo, ao ensinar aos alunos os conceitos fundamentais de determinado filósofo, possibilita que eles tenham um novo alcance de compreensão a respeito de alguns temas e que eles produzam conhecimento próprio depois de familiarizados com tais conceitos. Já a autoridade despótica é aquela que procura dominar, comandar e até mesmo aprisionar os outros. Para isso, utiliza táticas como a ameaça à integridade física e psíquica por meio de atos violentos e pela propagação de enunciados de ódio, exercendo a dominação pelo medo e pela força; e a restrição das possibilidades de subjetivação e expressão, isto é, pelo empobrecimento da educação e pela censura de manifestações artísticas e políticas, tornando os indivíduos mais facilmente sugestionáveis.
Quais condições psíquicas tendem a favorecer relações de servidão voluntária e de autoritarismo?
Marcelo Checchia: É preciso deixar bem claro que as condições psíquicas que favorecem a servidão voluntária e o autoritarismo não são independentes de algumas condições sociais. Dito isso, a tese que procuro defender no livro – a partir da articulação entre a teoria do narcisismo de Freud, a teoria do estádio do espelho e da agressividade de Lacan e a teoria do conflito interno de Otto Gross – é a de que tais condições psíquicas se concentram na formação do Eu (ego). Sintetizando ao máximo o que está mais desenvolvido no livro, diria que as experiências de violência, de arbitrariedades, de intimidação ou mesmo de sugestões que suprimem as particularidades de cada ser humano, vivenciadas desde o início da vida, tendem a levar à formação do Eu autoritário, do Eu servil e do Eu que oscila entre as duas posições. É, portanto, o modo pelo qual se forma nosso Eu que dá a base psíquica para o estabelecimento de relações de domínio e servidão.
A autoridade simbólica ajuda o sujeito a se emancipar psiquicamente. Já a autoridade despótica é aquela que procura dominar, comandar e até mesmo aprisionar os outros.
Poderia exemplificar como o autoritarismo está presente na linguagem? E de que maneiras a sociedade pode contribuir para a produção de discursos menos autoritários?
Marcelo Checchia: O autoritarismo está presente na linguagem, mas não é uma propriedade inerente à linguagem. Ela pode ser usada como instrumento de dominação na medida em que é usada para ludibriar e manipular os outros. As fakenews são um exemplo disso. Outro exemplo é a circulação de enunciados de ódio. Nesse caso, a linguagem é usada para ameaçar a integridade narcísica dos indivíduos que se opõem aos governantes autoritários.
A educação e a formação do pensamento crítico são indispensáveis na luta contra os discursos autoritários, mas podem não ser suficientes. Otto Gross dizia as revoluções fracassaram porque os revolucionários que as realizaram carregavam em si mesmo a tendência ao autoritarismo (George Orwell, de certo modo, dizia o mesmo em sua fantástica obra A Revolução dos Bichos). Por isso, Gross também dizia que a revolução deve começar pela subjetividade, isto é, cada um precisa reconhecer em si mesmo o princípio autoritário, caso contrário a educação pode ser tão somente mais uma forma de sugestão, convencimento e manipulação das massas. A psicanálise poderia contribuir aqui provocando os sujeitos a realizar esse reconhecimento. Para isso, creio que a sociedade poderia se beneficiar se incluísse na educação reflexões sobre o narcisismo e seus efeitos.
Como a escuta pode colaborar para promover a autonomia das pessoas?
Marcelo Checchia: Quando se trata de uma escuta psicanalítica, essa escuta incita as pessoas a escutar o que elas mesmas dizem. Essa escuta leva tanto à responsabilização pelos próprios desejos e modos de gozo (uma satisfação mortífera cuja função é tentar frear, barrar ou mesmo destruir o desejo) quanto à ressignificação de sua própria história, ampliando assim as possibilidades de expressão e de subjetivação, indispensáveis para a promoção da autonomia das pessoas.
Qual a distinção entre o que é desejo inconsciente e uma vontade manifesta pela pessoa?
Marcelo Checchia: Na psicanálise costumamos mesmo diferenciar vontade e desejo. A vontade é um "querer" consciente que parte do Eu e que é atravessado pelos valores sociais. Já o desejo é algo próprio do sujeito da fala e da linguagem, ele independe das vontades do Eu e dos valores ou ideais do indivíduo. Um sujeito pode desejar algo contrário ao que prega ideologicamente. Uma pessoa, por exemplo, pode ter um desejo homossexual mesmo defendendo a heteronormatividade (a própria defesa da heteronormatividade, na verdade, geralmente já é uma expressão, por oposição e negação, desse desejo homossexual). O desejo tende a ser inconsciente justamente por provocar um conflito com as vontades do Eu, sendo assim recalcado.
Quais tipos de sofrimento o autoritarismo pode produzir?
Marcelo Checchia: São diversos os tipos de sofrimento produzidos pelo autoritarismo, cabe aqui citar apenas os mais básicos. A ameaça à integridade física provoca um abalo narcísico e uma desorientação psíquica. Para se restabelecer, o indivíduo tende a se enclausurar e a lutar pela própria autoconservação, propiciando a dissolução do laço comunitário. Já a censura e o empobrecimento da educação contribuem para o desamparo discursivo, isto é, o sujeito perde suas possibilidades de subjetivação e de expressão na linguagem. O autoritarismo ainda pode levar à reprodução da violência, seja pela vingança, seja pela identificação com o agressor, que num primeiro momento é ao mesmo tempo uma defesa ao rebaixamento psíquico e uma tentativa de saída da desorientação psíquica.
O autoritarismo ainda pode levar à reprodução da violência, seja pela vingança, seja pela identificação com o agressor.
Atualmente, muitos brasileiros têm se questionado sobre "até quando podem aguentar" em relação às dificuldades sociais e econômicas existentes antes e durante a pandemia. Neste sentido, qual a importância de se identificar um ponto subjetivo de "basta"? E o que pode contribuir para prevenir que o desespero transborde?
Marcelo Checchia: O ponto subjetivo de basta é importante na medida em que incita ao ato político. É preciso fazer algo, não podemos ficar na passividade ou indiferença. Nesse sentido, pode ser interessante não prevenir que o desespero transborde. Ele pode contribuir para que se dê esse ponto de basta.
No Brasil vemos a escolha de lideranças e representações frequentemente transitar pela busca de "um pai que resolva os problemas". Podemos pensar em uma relação entre patriarcalismo, autoridade e autoritarismo?
Marcelo Checchia: Sim, certamente. Diria que nem toda forma de autoritarismo é patriarcal, mas toda forma de patriarcado é um autoritarismo. E buscar um pai que resolva todos os problemas implica necessariamente em ficar numa posição passiva e submissa, sendo assim uma expressão daquilo que La Boétie chamou de servidão voluntária.
Já a autoridade, como disse antes, não é necessariamente autoritária ou patriarcal. Mesmo na anarquia, que em sua essência recusa qualquer forma de autoritarismo e patriarcado, há figuras de autoridade que são respeitadas. Lembremos da famosa frase de Bakunin "eu respeito a autoridade do sapateiro". A autoridade aqui é tão somente o representante de um saber.
A relação dos brasileiros com a política é marcada pelo autoritarismo?
Marcelo Checchia: Certamente! Curioso é que os verdadeiros nativos, os índios, são os que podem dar exemplo ao mundo inteiro sobre como é possível evitar uma organização comunitária autoritária. Os Nhambiquaras e Yanomamis criaram uma série de contradispositivos para evitar o abuso dos líderes comunitários, fazendo prevalecer o princípio da ajuda mútua. No entanto, desde a chegada dos homens brancos o autoritarismo passou a dominar nossa política. A devastação da população e da cultura indígena é uma prova disso.
Buscar um pai que resolva todos os problemas implica necessariamente em ficar numa posição passiva e submissa.
Temos na História exemplos terríveis de como as relações de obediência tendem a priorizar um vínculo individual (a manutenção de um emprego, a consideração do superior) em detrimento dos efeitos nefastos produzidos sobre muitas pessoas. O Julgamento de Nuremberg e o experimento de Milgram, por exemplo, expuseram as atrocidades cometidas em torno do "estava apenas cumprindo ordens". Falta uma percepção de o quanto o individual pode comprometer o coletivo?
Creio que em alguns casos falta essa percepção de que as vantagens ou benefícios individuais prejudicam o coletivo e, em outros casos, a percepção é bem clara e, ainda assim, prioriza-se o individual em detrimento do coletivo. Diria também que o movimento bolsonarista, em grande parte, é bastante consciente desse prejuízo da coletividade e que esse prejuízo faz parte de seu projeto. Nesse sentido, penso que não só o bolsonarismo, mas os movimentos autoritários que cresceram nos últimos anos ao redor do mundo são uma espécie de panfleto sadeano atualizado. Seria proveitosa uma releitura de "Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos", que é uma espécie de panfleto político presente em "A filosofia da alcova", de Marquês de Sade, para entender esses movimentos autoritários atuais.
Um movimento que ocorre nas relações em sociedade é a culpabilização. O outro, que pode ser um vizinho, um colega ou um familiar, é apontado como o responsável pelo infortúnio de um sujeito. Neste sentido, como a implicação de cada um nos eventos que concernem à própria vida pode contribuir para relações mais saudáveis e menos marcadas pela hostilidade?
Marcelo Checchia: A implicação de cada um leva à saída da passividade e da indiferença, bem como leva cada um a reconhecer sua parcela de responsabilidade naquilo do qual se queixa, como diriam Freud e Lacan. Aliás, a política da psicanálise freudo-lacaniana não deixa de ser uma política de responsabilização: a experiência psicanalítica leva as pessoas a se responsabilizar pelos próprios desejos e pelos próprios modos de gozo. No entanto, essa política não garante que as relações sejam menos marcadas pela hostilidade, pois a ética psicanalítica, soberana a essa política, consiste em dar liberdade para que cada sujeito escolha seus princípios éticos e políticos.
*Entrevista originalmente publicada em 30 de agosto de 2020, no portal HuffPost Brasil.