If you tolerate this, then your children will be next
Mais um dia em que o Brasil fica boquiaberto com o próprio horror
Ao impacto do horror, o significante que mais ressoa é o da monstruosidade. Também pudera, o horror é desconcertante. Mas desde que encontrei a escrita de Primo Levi, cujos livros buscaram documentar como era a vida em um campo de concentração durante o nazismo, questiono bastante a atribuição de “monstro” a um ser humano que assina atos de brutalidade e crueldade. A desumanização há muito tempo serve a História de pretextos para a violência – corpos desumanizados são corpos descartáveis, matáveis. Em outra vertente, ela também serve a uma isenção humana de sua própria implicação no convívio social – se é monstro, então não precisa obedecer às leis que gerem as relações. Se o outro é monstro, nada temos a ver com isso enquanto sociedade.
Mas não são monstros, são humanos todos aqueles capazes de subjugar o outro e infligir a este os piores sofrimentos. Humanos pulsionais, de pouca ou nenhuma renúncia aos anseios de destrutividade, muitas vezes poupados de suas responsabilidades. São atravessados pela linguagem, efeitos da cultura em que estão inseridos, subjetivados pela relação com o Outro e sujeitos ao mal-estar. É bem popular a cilada simplista de que só pratica o mal aquele que já não é humanizado.
Mas a maldade é íntima e produto da humanidade, instrumentalizada para o exercício do poder e convenientemente ignorada socialmente para que, uma vez individualizada, então façamos a eleição do “monstro da vez”. Onde a maldade mais repousa e se abastece é no discurso de ódio, ou seja, nas permissões cotidianas de humilhação e preconceito, na exaltação à crueldade, na desresponsabilização de algozes e na asfixia da denúncia. Não se trata de fenômenos aqui e ali, mas de toda uma estruturação em torno da não aceitação da alteridade. De 2018 a 2022 o Brasil potencializou o discurso de ódio de tal maneira que ele se tornou política pública e política de intimidade. Aprendemos a odiar, como escreveu Clemente, dos Inocentes.
Aprendemos a odiar a educação, a cultura, o meio-ambiente, as pessoas, a diversidade, a sexualidade alheia, a justiça, a solidariedade. Ódio em palavra e ódio em ato, cultivado de tal maneira que hoje não é difícil testemunhar arautos deste discurso sendo tratados na imprensa com a naturalidade de quem está em casa e pode fazer qualquer coisa. Este é o discurso que habitamos, mesmo a contragosto, e por não nos identificarmos com ele é que precisamos modificá-lo.
Cada vez que não intercedemos coletivamente sobre este discurso, desarticulando as redes de relação cultivadas em torno do extermínio, o que sobra é a pior das heranças humanas: a possibilidade de matar uns aos outros.
Que o nosso desconcerto com a violência brasileira reflita o desconcerto com a estruturação de uma sociedade que se gaba de sua insensibilidade e nos impulsione para ações mais concretas em torno da proteção dos valores humanísticos que podem nos conduzir ao futuro: o cuidado com o outro, especialmente os mais vulneráveis; e a elaboração dos lutos coletivos.
*“Se você tolera isso, seus filhos é que serão afetados um dia.”
Este é um trecho da letra da música “If you tolerate this your children will be next”, da banda galesa Manic Street Preachers. A faixa faz parte do álbum This is My Truth, Tell Me Yours, de 1998.