Contradições, porta-vozes de nossa verdade
Uma defesa à escuta de nossas inconsistências cotidianas
Olá! Já faz um tempinho que não publico aqui, mas gostaria de retomar as postagens com um tema bem caro pra mim: nossas contradições.
Trago aqui um trechinho de meu livro Psicanálise e contradição: o conflito na ponta da língua, que acaba de ser lançado pela editora Dialética. Ele está disponível para venda no site da editora e também na Amazon.
E quem estiver fora do Brasil pode comprar a versão em e-book aqui.
Boa leitura!
Definitivamente, estou protegido pelas minhas contradições. E é por elas que está garantida a minha democraticidade! E vocês não poderão nunca debater as questões que me interessam como se eu fosse uma autoridade, exatamente pela presença das minhas contradições escandalosas, e pelas quais, primeiro, eu fico em uma situação embaraçosa.
(Pier Paolo Pasolini, 1964)[1]
Se para o escritor, poeta, jornalista e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, notório por filmes como o controverso Salò ou os 120 dias de Sodoma, as contradições guardam-lhe um lugar de proteção, para muitas pessoas elas são interpretadas como indícios de vulnerabilidade e incoerência, revelando sobre o sujeito algo que escapa à lógica e que o coloca em uma posição de incerteza. Desconcertantemente, uma posição de quem não sabe sobre si.
O cineasta contestador da opressão que se vê assombrado pela figura de Deus; o visionário que buscou conectar as pessoas, mas que atraiu a solidão para si; a revolucionária avessa às regras mas devotada a um homem; o intelectual progressista libertário nas ideias e conservador na intimidade. Como nos lembra Pasolini, perde-se certa autoridade quando a contradição deixa cair o inesperado de cada um. Ganha-se reconhecimento da subjetividade, contudo.
Por também possuir formação e experiência no jornalismo, área em que trabalhei como repórter e editora-assistente por pelo menos 10 anos antes de me dedicar integralmente à Psicanálise, vivenciei o posicionamento da contradição como aquilo que deveria estar à margem do sujeito, como um "resto" que o desfavorecia. Em uma investigação, fosse administrativa, criminal ou cível, o relato contraditório proferido pela pessoa envolvida culminava na suspensão de sua credibilidade, instalando uma rachadura perceptível em seu discurso. A contradição em si se tornava notícia, de modo a qualificar seu falante.
No âmbito jurídico, por exemplo, em um recurso judicial publicado no site do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, de Florianópolis (SC), o depoimento de uma das partes envolvidas em um processo trabalhista (no caso, a ré) pretendeu demonstrar a veracidade de fatos envolvendo as horas trabalhadas, mas as demais provas apontavam para um sentido diverso. Deste acontecimento resultou uma hipótese de deficiência probatória – uma espécie de desqualificação jurídica da versão apresentada.
Outro exemplo do efeito desfavorável da contradição pode ser encontrado na linguística textual, em que elementos contraditórios precisam ser eliminados para não prejudicar o entendimento do sentido de um texto. A partir da análise de redações de alunos dos ensinos fundamental e médio, o linguista francês Michel Charolles definiu quatro requisitos cruciais para a produção de um texto coerente e coeso: repetição, progressão, não-contradição e relação. A não-contradição deve ser observada tanto no âmbito interno do texto quanto nas relações que o escrito tece com o mundo a que se refere, assim como no plano conceitual (da coerência) e no plano da expressão (da coesão).
A emergência de contradições nos variados contextos apresentados acima tende a apontar para um desencontro entre o falante e a intenção de fala, o que denota uma ausência de domínio sobre o que se diz. Não um desencontro sem repercussões, mas um que depõe contra o próprio sujeito, na medida em que suspende a esperada veracidade de sua verbalização. As falas, escritas e posturas contraditórias resultam, desta forma, em um descarte da credibilidade daquele que se contradisse.
É da lógica clássica fundada pela tradição metafísica grega que advém a superação da contradição como um princípio para se chegar à verdade e ao conhecimento. O primeiro e principal defensor do princípio da não-contradição é Aristóteles (384/383 A. C. – 322 A. C.), no livro Gama da Metafísica, onde afirma que é impossível que uma proposição seja verdadeira se, e quando, ela se contradiz a si mesma.
Embora conceitualmente declarada como um impedimento à verdade, a contradição não deixa de existir: se faz persistente no trato social e é reverberada na cultura. Suas ocorrências resultam inclusive em caracterizações pessoais, como esta que é oferecida por Betsy ao personagem Travis, vivido por Robert de Niro no filme “Taxi Driver”:
— Sabe do que você me lembra?
— Do quê?
— Daquela música… do Kris Kristofferson: “Ele é um profeta, profeta e traficante, parte verdade, parte ficção, uma contradição ambulante.” Você é isso.
— Não sou traficante, Betsy. Nunca fiz isso.
— Não quis dizer isso, Travis. Eu me referia apenas à parte da contradição.
As contradições estão expressivamente presentes no dia a dia e têm ocorrência indistinta – contradizer-se, em algum nível, é algo a que todos somos suscetíveis. Uma afirmação generalizante como esta, porém, demanda embasamento teórico, o que é possível graças a um dos mais destacados pensadores do século 20.
Já habituada às minhas autorais incoerências constatadas na análise pessoal e às incongruências recolhidas na atividade psicanalítica em consultório, interessei-me pela compartimentação esperada do sujeito perante suas contradições: ali elas são toleradas; aqui, nas demais interações, não.
Com frequência, pois, atestamos ou denunciamos, como humanos, a existência delas, seja via discurso ou atitudes. Testemunhamos, em nossas relações, que a contradição não pode ser apartada de nossa condição de seres falantes.
Uma vez assumida na empiria dos dias, há alguma teorização, via linguagem, que dê conta de sua realidade? O que faz com que alguém diga algo e simultaneamente afirme o contrário disso? E o que poderia sustentar estas contrariedades como legítimas e simultaneamente verdadeiras? Surgia, então, uma busca teórica para os registros clínicos e cotidianos, uma tentativa de “reconciliação” do sujeito com a contradição que lhe dá humanidade.
Este livro toma por questão central as contradições proferidas pelos analisandos no ambiente da clínica psicanalítica e que são rejeitadas pelo próprio sujeito e pela sociedade nos contextos externos ao consultório, uma vez que denotam, discursivamente, um conflito com a autoimagem gerada pelo imaginário do paciente, e uma fratura da coerência esperada nas relações.
Diferentemente da lógica clássica, que estabelece a exclusão necessária da contradição, para a Psicanálise ela é uma marca de todas as pessoas, dentro ou fora do contexto de uma análise, como afirma Freud na primeira parte das “Conferências introdutórias”, de 1916:
É importante que se comece logo a levar em consideração que a vida psíquica é praça e campo de batalha para tendências opostas, ou, expresso em termos não dinâmicos, ela se compõe de contradições e pares de oposições. Comprovar a presença de determinada tendência não significa excluir outra, oposta a ela: há lugar suficiente para ambas. Tudo depende de como essas oposições se posicionam umas em relação às outras, que efeitos decorrem de uma e de outra[2].
Se na lógica clássica, em que vige o sujeito epistêmico, não há espaço para os erros e contradições, ambos têm manutenção assegurada na lógica do inconsciente. O desencontro consigo mesmo e os conflitos internos são premissas existenciais do sujeito pela definição freudiana, que afirma que "nossa vida psíquica é movida por incessantes conflitos, que cabe a nós resolver"[3].
Apesar de viver da ilusão de que possui controle do que diz, uma pessoa pode dizer algo e desdizê-lo, e tal possibilidade é sustentada pelas formações do inconsciente, expressas por sonhos, sintomas, atos falhos, chistes e esquecimentos. Nestes espaços, o sujeito experimenta o outro de si.
[1] Extraído da crônica Quem pode se escandalizar, publicada em 1964 na revista italiana Vie Nuove. Tradução de Buaes (2009), p. 183.
[2] Sigmund Freud, Conferências introdutórias à Psicanálise ([1916-1917] 2014), p. 103-104.
[3] Sigmund Freud, Conferências introdutórias à Psicanálise ([1917] 2014), p. 464.
Não poderia ser mais oportuno para o momento que estamos vivendo acolhermos nossas contradições. Talvez assim possamos enxergar um outro menos ameaçador.